O Jardim.

EmanuelGF
5 min readAug 21, 2021

Por: Emanuel Faísca

Imaginem um jardim. Um jardim do tamanho de um campo de futebol. Por ele passa um curso de água e, à volta deste curso de água até aos limites do jardim, abundam todo o tipo de legumes, frutas, flores e pequenas criaturas que vivem em harmonia com tudo o resto.
Eventualmente umas novas criaturas aparecem no jardim (imaginem as criaturas como entenderem). A princípio as criaturas ocupam uma pequena parcela do jardim, procriando e consumindo num estado de harmonia e equilíbrio tal como tudo o resto. Mas estas peculiares criaturas são diferentes de tudo o resto no aspeto de que elas possuem uma inteligência um pouco mais desenvolvida. Até certo ponto as criaturas conseguem ter consciência das suas ações e por isso planear e criar para si mesmas, coisas que de outra maneira nunca existiriam naturalmente.

Rapidamente as criaturas consomem e procriam ultrapassando os limites de recursos e espaço da pequena parcela do jardim onde estavam. Agora as criaturas são forçadas a ir habitar novas parcelas. Porque não conseguem chegar a um consenso de qual a melhor parcela do jardim a habitar, as criaturas dividem-se e partem aleatoriamente para vários sítios do jardim. E em pouco tempo vários focos das criaturas são visíveis no jardim. E durante algum tempo as criaturas desenvolvem as suas parcelas do jardim. Procriam, consomem e criam novas ferramentas para si mesmas.
Passado mais tempo, algumas criaturas ultrapassam os limites das suas parcelas do jardim, depois de terem consumido todos os recursos e expandem os seus territórios. Algumas destas criaturas reclamam parcelas por onde passa o curso de água, consumindo e retendo esta. E eis que em breve as criaturas estão em conflito e a lutar pelas parcelas do jardim. Algumas bandeirinhas de criaturas são visíveis no jardim.
Durante muito tempo a guerra entre as criaturas é uma coisa comum. Criaturas morrem por várias gerações e algumas adotam a guerra nas suas culturas como modo de vida.
Eventualmente um foco de criaturas emerge, como a mais influente e capaz, militarmente. Agora este foco de criaturas mantém todas as outras num impasse e através do seu poder controla todas as outras. Uma paz passageira e espectral pode ser experimentada por algumas criaturas do jardim.

E durante muito tempo as criaturas podem voltar a procriar e a criar novas ferramentas para o seu bem estar individual e coletivo.

A escassez começa a sentir-se. Agora as criaturas desenvolvem um método de trocas de bens e produtos. Algumas criaturas percebem a natureza de jogo intrínseco na troca de recursos e tornam-se muito bons a jogar este jogo. Em breve os métodos pelo qual se trocam os recursos tornam algumas criaturas muito poderosas e influentes.
Mas a inteligência intelectual e emocional das criaturas parece desta forma ter os seus limites e estas sucumbem à ganância, corrupção e a uma incapacidade de pensar a longo prazo.

O jardim, agora infestado destas criaturas, é apenas uma amostra da sua anterior gloria natural. Ao longe, este jardim, do tamanho de um campo de futebol, está envolto numa neblina tóxica, resultado da atividade das criaturas. Quase todas as outras criaturas, plantas, recursos que habitavam em harmonia o jardim estão agora mortos ou prestes a morrer. E, no seu lugar, só se veem as estruturas das criaturas, criações artificiais que se recusam a obedecer ou pelo menos coexistir com as leis naturais do jardim. O jardim é quase todo ele um habitat artificial e todos os recursos são escassos e, para além disso, processados para permitir a subsistência das criaturas e do próprio jardim.

Alguma criaturas aprenderam a jogar o jogo dos recursos tão bem que se tornaram muito poderosas, subindo acima das leis que elas próprias criaram e subjugando de forma subversiva todas as outras.

E durante algum tempo as criaturas vivem e prosperam neste novo mundo artificial. Cada vez mais consomem os recursos e tentam alterar as leis naturais do jardim. Corrompem-se e reproduzem-se ainda mais.
O jardim está agora cheio de criaturas, quase a abarrotar. O jardim já não é um jardim, mas sim um contentor de criaturas uma bolha artificial prestes a rebentar. Lá dentro desta bolha as leis naturais do jardim, que outrora permitiram a criação das criaturas, já não oferecem nada a estas e na verdade são agora um detrimento para as criaturas que lutam contra elas.

As criaturas estão agora perante um problema. Os recursos estão a acabar, tudo está corrompido e é artificial. Doenças de todos os tipos assolam as criaturas, guerras pelos recursos que ainda existem são travadas. Partes do jardim tornam-se demasiado tóxicas para as criaturas.

As criaturas olham desesperadamente para fora do jardim à procura de outros jardins para habitar mas estes estão demasiado longe para as criaturas lá chegarem.

No meio de tudo isto as criaturas que aprenderam a jogar o jogo dos recursos e que se tornaram muito poderosas e influentes juntamente com as criaturas que ainda dominam algumas parcelas do jardim encontram-se para decidir o que fazer. Chegam à conclusão que existem demasiadas criaturas a consumir recursos e que se este número for reduzido será possível reverter e controlar a situação. Sem abdicar dos seus poderes as criaturas decidem então aplicar uma política de redução de criaturas. Criam um plano impercetível que não só levam as demais criaturas a aceitá-lo como a apoiarem-no voluntariamente.
Em breve as criaturas começam a morrer e uma ordem precária é restaurada. E durante muito tempo as criaturas vivem num estado de restrição e artificialidade que as tornam irreconhecíveis à sua anterior forma. As criaturas já não se distinguem como criaturas e são antes algo anormal e amorfo. Uma anomalia. O jardim, uma bolha enegrecida e suja, uma célula cancerígena.

E passado muito tempo as criaturas desenvolvem meios artificiais para sair do jardim e consumir e infetar outros jardins. E este torna-se o único propósito das criaturas, infetar e consumir jardins.
Noutro jardim, muito, muito longe, outras criaturas que aprenderam a viver em harmonia e equilíbrio no seu jardim, deparam-se com as criaturas amorfas e antinaturais que vagueiam o vácuo entre jardins. Vendo estas formas artificiais de vida como anomalias vazias de qualquer intenção natural. As criaturas decidem livrar-se delas com aversão.

Tudo o que as criaturas tinham de fazer era cuidar do jardim. Podiam ter estudado o jardim e todos os seus processos, pensado a longo prazo e investido as suas vidas na manutenção do jardim.

Podiam ter sido as guardiãs do jardim pondo este e todos os seus habitantes em primeiro lugar e esquecendo os seus caprichos pessoais. Podiam ter perpetuado e educado a ideia de que elas eram o jardim e o jardim eram elas e ambos viviam numa direção comum. Podiam ter descoberto os segredos do jardim e do universo de jardins. Podiam ter vivido num paraíso eterno no meio de incontáveis criaturas entre infinitos jardins. Mas não o fizeram.

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